Mais de 6000 indígenas de 176 povos distintos, entre eles mais de 200 Mẽbêngôkre-Kayapó, estão participando da Primavera Indígena, a maior mobilização indígena da história brasileira desde a constituinte. Desta vez trata-se do Acampamento Luta pela Vida, organizado pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil e todas suas organizações de base, que estão reunidas em Brasília para lutar em defesa de direitos, pela democracia e contra toda a agenda anti-indígena no Congresso. É uma união de todos os povos para lutar em defesa do direito originário à terra. Terra é Vida para os Mẽbêngôkre-Kayapó.
📸 Scarlett Rocha @scarlettrphoto
Dentro da extensa agenda anti-indígena no congresso há muitos projetos de lei que ameaçam os direitos territoriais indígenas. Entre eles, podemos mencionar alguns um pouco mais urgentes: o PL 191 pretende liberar atividades predatórias incluindo mineração em Terras Indígenas; o PL490 restringe profundamente os direitos territoriais indígenas, entre eles o usufruto exclusivo; o PDL 177 pretende desobrigar o Brasil diante da convenção 169 da OIT que prevê o direito à consulta livre prévia e informada; o PL 2633 e o PL 510 desejam regularizar a grilagem de terras; PL 2159 fragiliza os procedimentos de licenciamento ambiental. O que todos estes projetos em tramitação têm em comum é que são concebidos por inimigos históricos dos povos indígenas, setores da sociedade contrários a seus direitos, ávidos por apropriar-se predatoriamente de suas riquezas.
Nesse contexto de forças que visam o retrocesso dos direitos territoriais indígenas há quem argumente que existe “muita terra para pouco índio do Brasil". Será que isso é verdade? Um levantamento do Instituto socioambiental diz que não. Ao contrário disso, o que estes dados indicam é que há muita terra para poucos proprietários rurais, 41% do território nacional, dentro disso 11% é de pastagens degradadas. Muito menos do que as áreas ocupadas por proprietários rurais, as Terras Indígenas ocupam 13,8% do território nacional, 98% delas está na Amazônia legal. Fora da região amazônica, as áreas indígenas são minúsculas, onde somente 0,6% do território é terra indígena. Vale lembrar que a demografia das populações indígenas e suas territorialidades são diversas, seguem suas próprias lógicas que no geral acolhem grande biodiversidade. Contudo, a proporção populacional dos indígenas em relação a área que ocupam e o restante da sociedade não é maior. Só na Amazônia Legal 62% da população na Amazônia legal é indígena, já no restante do país o percentual é de 38%.
A média mundial (15%) do percentual de território nacional com os povos indígenas é superior à brasileira. O Brasil é campeão em concentração fundiária, poucos produtores rurais detêm a maioria das áreas, existem 51,2 mil latifúndios, 1% das propriedades rurais correspondem a 20% do território. Nos estados com maior presença do agronegócio, como Goiás, São Paulo e Minas gerais, o percentual de terras indígenas não passa de 0,3% no caso de São Paulo, Minas gerais é de 0,2% e Goiás 0,1%. Se houvesse necessidade de expandir a área de exploração agrícola valeria lembrar que na Amazônia existe uma área sem destinação que corresponde a 2 vezes o território de São Paulo.
Existem muitas razões para defender a demarcação e a proteção de terras indígenas, uma muito importante é que essas terras prestam um serviço gigante à humanidade por estarem preservadas, inclusive em 98%. O desmatamento geral na Amazônia é de 19%, já dentro das terras indígenas é de 2%. As terras indígenas contribuem para a manutenção da economia e da própria produção rural. A floresta em pé contribui com a regulação do clima, prevenção a extremos e desastres climáticos. Inclusive, nas terras indígenas da Amazônia, fora delas a temperatura pode ser de 4ºC a 8ºC maior. As terras indígenas contribuem com a manutenção do regime de chuvas no continente e garantem a disponibilidade de água. Na Amazônia, terras indígenas transpiram 5,2 bilhões de toneladas de água por dia.
No combate à crise climática, na Amazônia, terras indígenas armazenam 28,2 bilhões de toneladas de CO2 ou 33% do total. Outros serviços ambientais prestados se referem à fertilidade dos solos e controle de erosões, auxílio no controle de pragas e doenças. A floresta oferece madeira, alimentos, fibras e remédios. O argumento da necessidade de produzir não pode ser pretexto para retirá-las dos indígenas porque elas mesmas produzem, biodiversidade, alimentos, turismo, artesanato, remédios, essências, fibras, castanhas, todas atividades sustentáveis que precisem de incentivos adequados.
📸 Kamikia Kisedje @kamikiakisedje
A mobilização da Primavera Indígena é realizada em continuidade ao Levante pela Terra, realizada durante 3 semanas em junho passado também na capital federal, quando mais de 100 lideranças Mẽbêngôkre-Kayapó estiveram presentes. Na ocasião, também estava previsto o julgamento no Supremo Tribunal Federal STF que vai analisar a (RE) 1.1017.3655, ação de reintegração de posse movida pelo governo de Santa Catarina contra o povo Xokleng. O caso recebeu o status de “repercussão geral" pela suprema corte e se refere especificamente à Terra Indígena Ibirama Laklãnõ, onde vivem os povos Xokleng, Guarani e Kaingang. Contudo, o resultado do julgamento irá servir de diretriz para a gestão federal e todas as instâncias da justiça em todos os procedimentos demarcatórios. Com isso será determinado se a tese do marco temporal será um critério definitivo para a demarcação de terras indígenas.
Após sucessivos adiamentos, o julgamento foi remarcado para dia 25 de agosto, o que trouxe mais de 6 mil indígenas de mais de 176 etnias de volta à capital para participar da semana de mobilização no acampamento Luta pela Vida. A mobilização teve o objetivo de acompanhar o julgamento, que foi novamente adiado para dia 1 de setembro de 2021, e procurar que o marco temporal seja definitivamente descartado da legislação.
📸 @renankhisetje/redexingu+
Adiado novamente na quarta-feira (26) para o dia 1º de setembro, o julgamento do marco temporal no Supremo Tribunal Federal está sendo considerado o julgamento do século por ter um potencial de retrocesso gigante e por trazer uma mudança com um impacto muito radical na realidade territorial dos povos indígenas. “Estão tentando nos cansar,” desabafou o vice-presidente do Instituto Kabu, Mydjere Kayapó, ao ser perguntado sobre os seguidos adiamentos do julgamento. A ação movida pelo governo de Santa Catarina, não leva em conta o fato dos Xokleng haverem passado por deslocamentos forçados, redução territorial, massacres e até diminuição de terras por causa de uma barragem. O caso dos xokleng não é isolado e grupos como os dos indígenas de várias etnias que vieram do Xingu, já anunciaram que vão adiar a volta para casa e esperar pelo reinício do julgamento na próxima semana. Mais de mil participantes de distintos povos permanecem na capital aguardando o julgamento.
📸 @sofiabhlisboa
Marco Temporal
Tese que consiste na ideia de que somente aqueles povos que estiveram na posse ou em juízo em disputa por suas terras de ocupação tradicional na data da promulgação da Constituição Federal, no 5 de outubro de 1988 teriam direito a sua efetiva demarcação. O marco temporal invisibiliza todo o histórico de violência que despejou muitos povos indígenas de seus territórios de ocupação tradicional ao longo da história da colonização até a atualidade, inclusive durante a ditadura militar. É uma tese injusta porque desconsidera às violências que despojaram aos indígenas de suas terras e ao fato de antes da CF 1988 prevalecer, lamentavelmente, o regime da tutela, quando os indígenas ainda não eram considerados cidadãos e não podiam entrar com representação em nenhum juízo em sua defesa.
Primavera Indígena: agosto
Agosto foi anunciado pela APIB como o mês de luta pelos direitos dos povos indígenas. Também celebrado pelo dia Internacional dos Povos Indígenas, o 9 de agosto foi estabelecido em virtude do lançamento da Declaração Internacional dos Direitos dos Povos Indígíenas da ONU. É nesse contexto que a APIB entrega uma denúncia internacional no Tribunal de Haia contra Bolsonaro por genocídio. É a primeira vez que os povos indígenas acudem a esse tribunal para defender seus direitos com a representação de seus próprios advogados, entre eles Eloy Terena e Samara Pataxó. Em janeiro, o cacique Raoni Metyktire denunciou o presidente Jair Bolsonaro por crimes contra o meio ambiente (ecocídio) no Tribunal Internacional de Haia e em agosto, no dia Internacional dos Povos Indígenas, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) entrou com outra denúncia contra o presidente, desta vez por genocídio pela sua gestão em relação a população indígena durante a pandemia.
Leia a denúncia entregue pelo Cacique Raoni na íntegra:
Leia a denúncia apresentada pela APIB na íntegra:
https://apiboficial.org/files/2021/08/DOSSIE_es_v3web.pdf
📸 Kamatxi Ikpeng
Os indígenas também têm apoio popular. Um abaixo-assinado contra o marco temporal recebeu 160 mil assinaturas, incluindo juristas, acadêmicos e artistas e foi entregue ao STF.
Há pouco mais de três semanas, indígenas favoráveis à legalização do garimpo, à plantação de soja em TIs e à exploração de Terras Indígenas por não-indígenas estiveram em Brasília e foram recebidos pelo Presidente da República. Eles não passavam de 300, o que demonstra claramente que a maioria dos indígenas quer manter o modo de vida interdependente da floresta e buscar alternativas econômicas sustentáveis nos territórios.
📸 Bepku-ê Juan @bhepkuekayapo
Em resposta, as mulheres lideranças Mẽbêngôkre-Kayapó associadas ao Instituto Raoni, Instituto Paiakan, Associação Floresta Protegida e Instituto Kabu fizeram questão de afirmar que o povo das instituições presentes no acampamento representa a maioria da população do povo mebengokre e que eles estão contra os projetos de lei da agenda parlamentar anti-indígena e também contra a gestão do atual governo. Está ocorrendo uma união e uma aliança histórica entre diverentes sub-grupos do povo Mebengokre. Grupos que há pouco tempo atrás eram rivais, agora estão unidos para enfrentar o retrocesso nas políticas públicas indigenistas do atual governo. Os Mẽbêngôkre-Kayapó do sul do pará, Metyktire, Mekragnotire e Xikrin estão unidos para lutar.
Ataques sistemáticos
Os ataques contra direitos reconhecidos na redemocratização do país têm sido constantes nos últimos anos. No Congresso, vários projetos em tramitação violam a Constituição, os direitos originários à terra dos indígenas, assim como seu usufruto exclusivo das riquezas existentes em suas terras. Outras medidas ameaçadoras são as tentativas de regularização de atividades predatórias, como o garimpo, que põem em risco a saúde dos rios e das pessoas que dependem dele.
Na luta contra o garimpo em Terras Indígenas, as etnias mais afetadas por ele aproveitaram para unir forças e continuar lutando para acabar com a extração de ouro de suas terras: três grupos de Mẽbêngôkre-Kayapó – Mekrãgnoti, Metyktire e Kikrin – Yanomami e Munduruku e Ye’kwana se reuniram na quinta-feira e divulgaram uma carta aberta formalizando a aliança contra o garimpo e os projetos que tentam legalizar e regulamentar a atividade (PL 490 e PL 191) “e contra todos os projetos de morte que o governo defende para roubar nossas terras”.
Leia a carta na íntegra:
📸 Kamikia Kisedje @kamikiakisedje
Durante o Luta pela Vida, lideranças femininas reafirmaram sua presença na luta e confirmaram a realização da Marcha das Mulheres Indígenas em Brasília, entre os dias 07 a 11 de setembro, com o tema “Mulheres originárias: Reflorestando mentes para a cura da Terra ”. As mulheres estarão atentas ao julgamento para descartar o marco temporal de uma vez. O acampamento mudou para o Memorial do Índio e vai ser permanente até terminar o julgamento no Supremo.
Leia a carta aberta: https://apiboficial.org/2021/08/28/primavera-indigena-mobilizacao-permanente-pela-vida-e-democracia/
📸 Kamikia Kisedje @kamikiakisedje
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Foto de capa: Antônio Melendez - @heartisan_films