O Último Legado de Tuíre Kayapó: Uma Oficina de Costura e a Partida de uma Líder Um Dia Depois

Entre os dias 4 a 8 de agosto de 2024, a aldeia Kubēkrânkej, situada nas profundezas da Terra Indígena Kayapó, tornou-se um vibrante centro de aprendizado, cultura e empoderamento feminino. A aldeia, onde Tuíre Kayapó passou boa parte de sua juventude, abrigou a última oficina de costura do projeto Kubē Kà Kayry, uma iniciativa idealizada e liderada por Tuíre para fortalecer a identidade cultural de seu povo, transmitir saberes ancestrais e promover a autonomia econômica das mulheres Mẽbêngôkre. Um dia após o término desse evento significativo, em 9 de agosto de 2024, Tuíre, uma das mais icônicas defensoras dos direitos indígenas e da preservação da Amazônia, faleceu aos 58 anos, deixando um legado que se estenderá por gerações.

Foto de Beptemexti Kayapó - Coletivo Beture.



A Capacitação de Costura Kubē Kà Kayry: Fortalecendo Tradições e Empoderando Mulheres


A Capacitação de Costura Kubē Kà Kayry, realizada na aldeia Kubēkrânkej, foi a última atividade de um projeto concebido por Tuíre Kayapó com o objetivo de preservar as tradições culturais de seu povo e garantir que as gerações mais jovens mantivessem viva a conexão com suas raízes. O projeto, intitulado "A Costura como Ferramenta de Empoderamento e Promoção da Autonomia das Mulheres Indígenas Mẽbêngôkre", teve uma duração de dois anos e foi financiado pela Conservação Internacional, com recursos doados pelo L'Oréal Groupe. Seu objetivo era duplo: contribuir para a maior autonomia das mulheres na produção de suas vestimentas, reduzindo a dependência de recursos externos, e possibilitar a geração de renda através da eventual comercialização dessas peças.



Inspiradas por uma experiência prévia na aldeia Kaprankrere, da Terra Indígena Las Casas, as mulheres Mẽbêngôkre, lideradas por Tuíre, reivindicaram à Associação Floresta Protegida a realização de um projeto de casas de costura em todas as aldeias associadas. O projeto, teve a oportunidade ser realizado no âmbito do Edital L’Orèal para o Futuro: Apoio às mulheres em situação de vulnerabilidade, onde a AFP se inscreveu e conquistou a oportunidade de realizá-lo. Centrado no fortalecimento das cadeias produtivas, na segurança alimentar e no fortalecimento cultural, também visava fortalecer a organização comunitária e política das mulheres Mẽbêngôkre, ampliando sua participação em instâncias políticas de tomada de decisão e defesa de direitos.


A construção das casas de costura foi um marco para as mulheres de cada aldeia, materializando um espaço produtivo e de aprendizado, onde poderiam se reunir, organizar suas atividades e expandir a cosmopolítica do povo Mẽbêngôkre. Os trajes tradicionais Kubē Kà Kayry são mais do que simples vestimentas; eles são símbolos de uma identidade profunda, carregando em suas cores e padrões a história e os valores do povo Mẽbêngôkre.


Durante os cinco dias da oficina, a aldeia Kubēkrânkej foi preenchida pelo entusiasmo das participantes, incluindo uma convidada da aldeia Kedjerekrã, somando 11 alunas ao todo. Ministrada por Simone Andrade, uma habilidosa costureira com 17 anos de experiência, oriunda de Terezina no Piauí e radicada em Brasília, a oficina ofereceu as primeiras noções de modelagem, corte e costura em máquina de ponto reto para a confecção de ecobags e vestidos tradicionais pintados com grafismos Mẽbêngôkre. Também foram confeccionadas sacochilas para esportistas, capas de almofadas e bolsas de variados tamanhos.






Foto de Beptemexti Kayapó - Coletivo Beture.



A oficina foi organizada de forma colaborativa com a comunidade da aldeia Kubēkrânkej, contando com a coordenação de Bepkrakti Kayapó e o apoio técnico de Parityk Kayapó e Angropryti (Kopre) Kayapó. Bekwynhdjô Kayapó, Nhakei Kayapó, Kokonganhti Kayapó e Irekre Kayapó foram as cozinheiras responsáveis pela alimentação das alunas e da equipe. A professora Simone Andrade contou com a articulação e tradução de Nhakmakoro Kayapó e a monitoria em costura de Bekwynhko Re Kayapó, ambas da aldeia Tekrejarotire, na Terra Indígena Las Casas. Representantes da Cooperativa Kayapó de Produtos da Floresta - CooBay, Bepton Kayapó e Kokoti Kayapó também trabalharam na Capacitação, auxiliando os técnicos e auxiliando no processo de costura. Beptemexti Kayapó, cineasta Mebengokre da aldeia Kubenkrakej trabalhou durante a Capacitação como câmera e fotógrafo, e ao longo de todo o projeto como captador das imagens para a Série Documental Kubē Kà Kayry, dirigido pela jornalista e videomaker Daniela Pinheiro.




Foto de Beptemexti Kayapó - Coletivo Beture


Para Tuíre, a oficina de costura não era apenas um curso prático. Era uma manifestação de sua visão de empoderamento das mulheres da comunidade, fortalecendo-as não apenas como guardiãs da cultura, mas também como protagonistas na geração de renda para suas famílias. Ela via no ensino do Kubē Kà Kayry uma maneira de manter viva a história e a criatividade de seu povo, assegurando que a tradição dos grafismos Mẽbêngôkre fosse preservada e passada adiante. Quando uma jovem aprende a fazer o Kubē Kà Kayry, ela está se conectando com seus antepassados e garantindo a continuidade de uma herança cultural inestimável.


Além de aprenderem as técnicas tradicionais de costura e pintura, as participantes discutiram formas de valorizar e comercializar os trajes tradicionais fora da aldeia, criando assim uma fonte de renda sustentável para as mulheres Mẽbêngôkre. Em um mundo cada vez mais globalizado e impactado por projetos de exploração de recursos naturais, essa iniciativa foi uma resposta criativa e resiliente aos desafios econômicos enfrentados pela comunidade. A oficina de costura também serviu como um espaço de fortalecimento organizacional, onde as mulheres puderam se reunir e trocar experiências. O projeto não apenas preservou a cultura Mẽbêngôkre, mas também fortaleceu a comunidade como um todo, aumentando sua coesão e capacidade de enfrentar desafios futuros.



O encerramento da oficina, em 8 de agosto de 2024, foi marcado por uma celebração de grande significado. As novas costureiras exibiram com orgulho os trajes que confeccionaram durante a capacitação num desfile na casa do guerreiro narrada por Bepkrakti Kayapó e o professor Raimundo, enquanto a aldeia era tomada por um misto de alegria e apreensão. A saúde de Tuíre, que há algum tempo lutava contra um câncer de útero, havia piorado nos dias anteriores, e a notícia de seu falecimento, em 9 de agosto, trouxe um profundo sentimento de perda para toda a comunidade Mẽbêngôkre e para todos aqueles que acompanhavam sua luta ao longo das décadas.


O Legado de Tuíre Kayapó: Uma Vida de Resistência e Inspiração





Tuíre Kayapó nasceu em 1967, na aldeia Kokrajmôro, no rio Xingu, dentro da Terra Indígena Kayapó, uma área de imensa biodiversidade. Desde cedo, ela foi profundamente influenciada pelas tradições de seu povo, os Mẽbêngôkre, conhecidos por sua forte ligação com a terra e por sua cultura rica e vibrante. Criada em um ambiente onde a oralidade e a convivência com a natureza eram fundamentais, Tuíre absorveu os valores de seu povo e logo demonstrou características de liderança. Após viver em Kokrajmôro, Tuíre passou por diversas aldeias, incluindo Kubēkrânkej, A'ukre e Gorotire, antes de se estabelecer na aldeia Tekrejarotire, na Terra Indígena Las Casas, onde viveu até seus últimos tempos.


A cultura Mẽbêngôkre valoriza profundamente a comunidade, e a infância de Tuíre foi marcada por rituais, histórias contadas pelos anciãos e um aprendizado intenso sobre as florestas e rios que sustentam a vida na Amazônia. Essas experiências moldaram sua visão de mundo e seu compromisso inabalável com a preservação da natureza e a proteção de seu povo.



Na década de 1980, em um Brasil marcado por profundas transformações econômicas, incluindo a expansão de projetos de desenvolvimento na Amazônia, como hidrelétricas, mineração e desmatamento, Tuíre Kayapó emergiu como uma das principais vozes de resistência indígena, ao lado de líderes como seu primo Paulinho Paiakan e o Cacique Ropni. O nome de Tuíre ganhou destaque internacional em 1989, durante o Primeiro Encontro dos Povos Indígenas do Xingu, conhecido como a Grande Manifestação de Altamira. Nesse evento histórico, Tuíre, em um ato simbólico e poderoso, confrontou representantes do governo e da Eletronorte, empresa responsável pelo projeto de construção da hidrelétrica de Kararaô no rio Xingu. Seu gesto audacioso de encostar um facão no rosto de um executivo da empresa se tornou um marco na luta contra a destruição das terras indígenas, levando à paralisação das licenças e obras por mais de uma década. Em resposta à pressão, o nome Kararaô foi retirado do projeto, que posteriormente foi rebatizado como Usina de Belo Monte, cuja construção só foi retomada em 2011 e concluída em 2016.


Ao longo das décadas seguintes, Tuíre Kayapó consolidou-se como uma líder reconhecida internacionalmente. Sua eloquência e carisma cativaram audiências em muitos lugares, trazendo à luz as realidades enfrentadas pelos povos originários no Brasil. Tuíre nunca se limitou à defesa de seu próprio território; tornou-se uma defensora dos direitos culturais, sociais e ambientais de todos os povos indígenas, enfatizando a importância de manter as tradições vivas em um mundo cada vez mais globalizado e ameaçado pelos interesses econômicos. Tuire abriu o caminho para que outras mulheres indígenas pudessem seguir o caminho da luta pela defesa de seus direitos e territórios.


Nos últimos anos de sua vida, Tuíre focou em iniciativas que combinavam a preservação cultural com a promoção da autonomia econômica de seu povo. Além de sua constante luta em defesa de sua terra e contra o Marco Temporal, um de seus projetos mais queridos foi a capacitação em costura. Esse projeto tinha como objetivo ensinar às mulheres Mẽbêngôkre a confeccionar trajes tradicionais, garantindo que as habilidades e conhecimentos ancestrais fossem transmitidos para as novas gerações.


A última oficina de costura, realizada na aldeia Kubēkrânkej, dias antes de sua morte, foi uma manifestação clara do compromisso de Tuíre com a preservação cultural e o empoderamento feminino. A iniciativa também visava criar oportunidades de geração de renda sustentável para as mulheres da comunidade, alinhando a preservação cultural com a autonomia econômica.


Foto de Nhakaykep Paiakan durante o 1 Encontro de Mulheres da Associação Floresta Protegida.


A morte de Tuíre Kayapó em 9 de agosto de 2024, após uma dura batalha contra o câncer de útero, deixou um vazio profundo na nação Mẽbêngôkre e em todos aqueles que lutam pela defesa dos direitos indígenas e pela preservação da Amazônia. Contudo, o impacto de sua vida e suas ações continuará a reverberar por gerações.


Tuíre Kayapó será lembrada como uma guerreira incansável, uma defensora da vida e da cultura de seu povo, e uma inspiração para todos aqueles que acreditam na justiça, na dignidade e na proteção do meio ambiente. Seu nome será invocado em lutas futuras, e sua memória servirá como um guia para as gerações que seguem seu exemplo.


Sua liderança não foi construída em escritórios ou palácios, mas nas florestas, nas margens dos rios e nas aldeias onde o futuro dos Mẽbêngôkre se constrói todos os dias. Seu exemplo nos lembra que a verdadeira força reside na coragem de defender aquilo que é mais precioso — a vida, a terra, a cultura e a natureza. Mesmo após sua partida, o espírito de Tuíre Kayapó continuará a guiar aqueles que lutam por um mundo mais justo e sustentável.


O legado de Tuíre Kayapó é vasto e multifacetado. Ele abrange não apenas a defesa incansável de sua terra, mas também o fortalecimento das mulheres de sua comunidade e a preservação das tradições culturais Mẽbêngôkre. Sua vida foi dedicada à proteção de seu povo e de sua terra, e sua morte marca o fim de uma era, mas também o início de uma nova fase, onde seu legado viverá e crescerá, alimentado pelo amor e pela determinação de um povo que ela tanto amou e defendeu.