Jovens Mẽbêngôkre constroem novas formas de narrar o mundo em oficina de fotografia, vídeo e jornalismo na Aldeia Tekrejarotire

Oficina “Narrativas Digitais” promove formação bilíngue em comunicação indígena e fortalece o protagonismo fotográfico e audiovisual na Terra Indígena Las Casas


Foto de Daniela Pinheiro


Em uma experiência inédita de comunicação indígena, jovens comunicadores Mẽbêngôkre participaram de uma formação bilíngue em fotografia, vídeo e jornalismo voltada à produção de narrativas próprias a partir do território. A oficina Narrativas Digitais: Fotografia, Vídeo e Jornalismo para Web uniram práticas contemporâneas e saberes tradicionais, fortalecendo a autoria indígena no campo da comunicação.


A atividade foi promovida pela Associação Floresta Protegida (AFP), com financiamento do projeto Apjêtekre Projeto “APJÊTKRERE” – Contrato nº 209/2024, no âmbito do 5º Ciclo de Projetos do Fundo Kayapó/FUNBIO, e Projeto “Kupitpre” – Contrato de Doação EIR 510/2024, em parceria com o Fundo Socioambiental CASA. A monitoria, condução e tradução da oficina foi realizada pelos cineastas Mẽbêngôkre Bepunu Kayapó e Kubekàkre Kayapó, do coletivo Beture. A oficina foi idealizada e ministrada pelas educadoras Daniela Pinheiro (fotógrafa e jornalista) e Carolina Sobreiro (antropóloga e pesquisadora), responsáveis também pela criação metodológica, elaboração da apostila e estruturação pedagógica do projeto.

 

 A formação aconteceu entre os dias 18 e 23 de abril de 2025, na Aldeia Tekrejarotire, localizada na Terra Indígena Las Casas (PA). Durante a oficina, os participantes produziram três ensaios fotográficos e três vídeos curtos no formato Reels, escolhendo coletivamente os temas a partir da proposta de resgatar saberes ancestrais e valorizar a cultura. Os trabalhos abordaram temas como a origem da aldeia Tekrejarotire, o papel das mulheres na preservação da cultura por meio do canto e da pintura, e o preparo do alimento tradicional Berarubu. Todas as produções foram realizadas com o acompanhamento das educadoras e dos monitores, integrando reflexões sobre autoria indígena, linguagem visual e ética no uso da imagem.


Foto de Bepbiereti Kayapó


Mais do que uma capacitação técnica, a oficina contribuiu para o fortalecimento de narradores indígenas, capazes de produzir imagens e palavras com enraizamento territorial, consciência ancestral e protagonismo comunicativo.

 

A realização da oficina contou com o empenho essencial de Tewadjá Kayapó, responsável pela coordenação de toda a logística local, garantindo o sucesso das atividades e o bem-estar dos participantes na aldeia Tekrejarotire. Além disso, a oficina teve o privilégio de contar com as cozinheiras Kokopjeti Kayapó e Ire I Kayapó, que cuidaram com dedicação e talento das refeições, proporcionando aos participantes momentos agradáveis e saborosos, fundamentais para a integração e o fortalecimento dos laços comunitários durante os dias de formação.

 

Todo o material produzido durante a oficina — fotografias e vídeos — será publicado entre os meses de maio e junho no perfil da Associação Floresta Protegida no Instagram (@florestaprotegida). As postagens darão visibilidade ao olhar dos jovens comunicadores Mẽbêngôkre e ao processo coletivo de criação, realizado em parceria entre indígenas e não indígenas, reforçando o compromisso com a valorização das narrativas contadas por quem vive e colabora com o território.


 Foto de Daniela Pinheiro


::: Aprender a narrar com corpo, floresta e memória :::


A oficina foi estruturada em três grandes eixos: fotografia, audiovisual e jornalismo. Cada um deles foi desenvolvido de forma integrada e colaborativa, respeitando o ritmo dos participantes e valorizando a escuta como ferramenta pedagógica. As aulas, ministradas em português pelas educadoras Carolina Sobreiro e Daniela Pinheiro, foram traduzidas para a língua Mẽbêngôkre pelos monitores Bepunu Kayapó e Kubekàkre Kayapó, e contaram também com o apoio de uma apostila elaborada por elas, que foi inédita no meio da comunicação indígena. 

 

Foto de Karazim Kayapó


No módulo de fotografia, os alunos exploraram desde a história da fotografia e seu uso em contextos indígenas até a técnica do triângulo de exposição — diafragma, obturador e ISO. Praticaram a composição de imagens, trabalharam com planos e ângulos, e aprenderam a importância da luz como elemento narrativo. As atividades ocorreram tanto em sala de aula quanto em campo, com caminhadas fotográficas pela aldeia e momentos de observação sensível da vida cotidiana.


Foto de Karazim Kayapó


Já o módulo de vídeo trouxe reflexões sobre a história do cinema indígena e o papel do audiovisual como instrumento político. Os alunos escreveram roteiros, aprenderam a operar a câmera, gravaram som direto, realizaram entrevistas e editaram material em softwares acessíveis. A captação foi acompanhada de discussões sobre ritmo, narrativa, corte e montagem — sempre com ênfase na autoria indígena e na construção de mensagens que expressem a diversidade das vivências Mẽbêngôkre.

No jornalismo, o curso abordou os fundamentos da prática jornalística (5W + 1H, pirâmide invertida, estrutura da notícia, perfil, escuta), mas sempre cruzando esse saber técnico com o território e com o corpo coletivo. A oficina destacou que ser um bom jornalista não é apenas dominar ferramentas, mas agir com compromisso ético, responsabilidade com a verdade, capacidade de escuta e consciência da posição que se ocupa ao contar uma história. A imparcialidade, nesse contexto, não é ausência de posicionamento, mas sim honestidade no trato com as informações e coragem para se posicionar diante de injustiças — como é o caso da luta contínua dos povos indígenas por terra, dignidade e memória.


::: Protagonismo indígena na produção audiovisual :::


Ao final da oficina, os 12 alunos produziram três ensaios fotográficos e três vídeos curtos no formato Reels para a web, atingindo as metas estabelecidas pela formação. Os temas foram escolhidos de forma coletiva, a partir das histórias, saberes e experiências da própria comunidade. Todos os trabalhos tiveram a orientação das educadoras e dos monitores e foram apresentados na Casa do Guerreiro para toda a aldeia Tekrejarotire A seguir, apresentamos uma sinopse de cada trabalho realizado:


Foto de Daniela Pinheiro


1. Tekrejarotire: a aldeia e sua origem


Este vídeo curto resgata a história de fundação da aldeia Tekrejarotire. Nhakraranti Kayapó compartilha a memória de sua avó, responsável por construir a primeira casa da aldeia, assim como do cultivo da primeira roça, e com isso com o reflorestamento da área. Quando chegaram, era só pasto. Hoje tem mato, tem cerrado, tem floresta de novo. O pajé Parityk Kayapó, do povo Xikrin, fala sobre a presença ancestral do subgrupo Irãmray’re, hoje extinto, e sua própria trajetória de migração e integração. Ao lado de seu neto, o jovem professor Megare Kayapó, reflete sobre o papel das novas gerações em continuar os legados: “Hoje protegemos o território com GPS, e lutamos com papel e caneta”, afirma.


Foto de Daniela Pinheiro


2. Pintura e canto: as mulheres que guardam a cultura


Neste segundo trabalho, os alunos registraram o ritual de pintura corporal com grafismos, intercalando imagens com cantos e entrevistas. A menire Bekwynhkore, liderança local, fala sobre o papel das mulheres como guardiãs da cultura. São as mulheres que cuidam da pintura, do canto, das meninas e da festa Menire Biôk, onde cada uma recebe seu nome ancestral de sua mãe, tia ou avó. O vídeo mostra que o corpo pintado é mais do que estética — é símbolo de identidade, proteção e história viva.


Foto de Daniela Pinheiro


3. Beraryby: tradição, alimento e afeto


O terceiro vídeo aborda o preparo do Beraryby, comida tradicional feita com massa de mandioca e carne (frango, peixe ou caça), assada em folhas de bananeira sobre pedras quentes. A menire Iregãnhti, que veio da aldeia Gorotire, ensina a receita e fala sobre a importância de manter os modos de fazer ancestrais. O vídeo revela como o alimento é também linguagem, cuidado e pertencimento — um elo entre gerações e entre o corpo e a terra.


Além desses materiais, foi apresentado um vídeo de making of produzido pelos alunos e um vídeo com a apresentação de todos os participantes, ambos também exibidos no último dia da oficina na Casa do Guerreiro.

 

Foto Kokongrêk Kayapó


De acordo com Kubekàkre Kayapó: “Durante a oficina de audiovisual realizada na Aldeia Tekrejarotire, tive a oportunidade de atuar como monitor. Essa experiência foi muito importante para mim, porque pude ajudar no processo de formação de novos alunos e também aprender muito ao longo do caminho. Como monitores, nossa função foi acompanhar os participantes e apoiar o trabalho da professora, traduzindo e explicando em Mẽbêngôkre tudo aquilo que era falado em português. Quando algum aluno tinha dificuldade para entender, a gente estava ali para esclarecer e garantir que todos pudessem acompanhar o conteúdo. Nós ajudamos não só com a tradução, mas também com a parte prática: edição de vídeo, fotografia, entrevistas…Trabalhamos bastante, mas foi muito gratificante. A oficina terminou com uma apresentação na Casa dos Guerreiros, onde mostramos o resultado do nosso trabalho para os caciques e a comunidade. Eles nos receberam muito bem. No encerramento, tivemos um momento de fala em que expressamos nosso agradecimento antes de irmos embora. Foi uma experiência muito boa. Gostei muito da oficina de audiovisual na TI Las Casas. Foi uma vivência importante e espero ter outras oportunidades como essa no futuro — para aprender mais, ajudar mais e conhecer melhor outras aldeias.


::: Comunicação indígena como ferramenta de transformação :::


A oficina Narrativas Digitais não foi um evento isolado. Ela se insere em um movimento maior de reposicionamento político dos povos indígenas na produção de seus próprios sentidos. Produzir vídeos, escrever notícias, editar fotos ou narrar em voz alta — tudo isso é, para os Mẽbêngôkre, uma forma de recuperar o território simbólico que lhes foi historicamente negado.


Mais do que conteúdo, o que se construiu em Tekrejarotire foi uma epistemologia de comunicação ancorada na floresta. Uma prática que reconhece as vozes dos anciãos, o som dos cantos, o brilho da pintura, a dança das crianças, a força dos alimentos e a sabedoria das palavras. Uma comunicação que não se mede por likes, mas por alianças, afetos e resistências.

 


Foto de Irei Kayapó


Como está escrito na conclusão da apostila, elaborada pelas educadoras Carolina Sobreiro e Daniela Pinheiro, e produzida para o curso:


“Ao longo destes dias, pensamos a comunicação como corpo-território, o jornalismo como ferramenta de denúncia e construção, a imagem como memória viva e o texto como flecha lançada na disputa por sentidos. Fazer jornalismo, gravar um vídeo, fotografar, escrever uma notícia ou lançar um podcast — tudo isso pode parecer apenas uma questão de técnica. Mas, para os povos indígenas, ser sujeito da própria palavra é um gesto profundamente político e ancestral. Trata-se de transformar a posição histórica de quem sempre foi falado em posição de quem fala.”


Foto de Karazim Kayapó


A oficina Narrativas Digitais é um gesto inaugural de uma geração que aprende a fotografar e filmar com os pés no chão, escutando a floresta, organizando sua indignação em palavras e imagens que atravessam fronteiras. A câmera, o microfone, a lente e a caneta passam a ser flechas de defesa, e de cura. Porque comunicar, neste território, é também cuidar.


Que outras aldeias possam inspirar-se nessa experiência. E que os jovens Mẽbêngôkre sigam registrando, publicando, compartilhando, cantando e narrando o mundo — a partir de onde a história sempre começou: o chão da floresta.


Alun@s:

 

1) Irekabô Kayapó – Aldeia Pykarãrãkre

2) Nhak-ô Kayapó – Aldeia Pykarãrãkre

3) Nhakwyruti Kayapó – Aldeia Ngôjamroti

4) Nhakture Kayapó – Aldeia Tekrejarotire

5) Nhakamrô Kayapó – Aldeia Tekrejarotire

6) Karakra Kayapó – Aldeia Ngômejti

7) Tomjajkwa Kayapó – Aldeia Kokrajmôro

8) Ireti Kayapó – Aldeia Mojkarakô

9) Kokôngrek Kayapó – Aldeia Mojkarakô

10) Wai wai Kayapó – Aldeia Tekrejarotire

11) Bepbjereti Kayapó – Aldeia Ronekôre

12) Kadjyre Kayapó – Aldeia Tekrejarotire

 

Foto de Karazim Kayapó